"... cá estou eu, infeliz, a tentar dar cumprimento à tarefa de tentar pasmar eventuais leitores com meia dúzia de memórias esfumadas já que, como dizem os RP, quaisquer pérolas de sabedoria poderão ser úteis a potenciais participantes..."

José Ferreira
Randonneurs Portugal Nº20100006
Paris Brest Paris 2019

José Ferreira Randonneurs Portugal Nº201300045 Paris Brest Paris 2019

À semelhança do que sucedeu após o evento de 2015, os Randonneurs Portugal (RP) solicitaram aos participantes portugueses no PBP 2019 que passassem a escrito as suas memórias relativas à grande festa do corrente ano, 19ª edição do Paris – Brest – Paris Randonneur, organizada pelo Audax Club Parisien e celebrada por cerca de 6500 randonneurs do mundo inteiro.

Crónicas há muitas…

Em geral, resumem-se em dois géneros: uma façanha desportiva digna de registo, enaltecendo a desenvoltura no desempenho da tarefa; ou, uma sucessão de desgraças, relevando a resiliência do participante que, contra ventos e marés, levou a bom porto a terrível missão. Bem, depois há os tristes, merecedores de pouca leitura, a quem nada de terrível sucedeu e, apesar disso, foram incapazes de despachar a odisseia em tempo digno de registo.

Pois, cá estou eu, infeliz, a tentar dar cumprimento à tarefa de tentar pasmar eventuais leitores com meia dúzia de memórias esfumadas já que, como dizem os RP, quaisquer pérolas de sabedoria poderão ser úteis a potenciais participantes. 

Terminado o introito, passemos aos números, os quais sempre darão um ar mais científico à descrição.

Saída às 5:00, na manhã de segunda-feira, 19 de agosto, inserido no pelotão “X”, quando já a grande maioria dos participantes desta edição calcorreava as estradas em direção a Brest. A escolha deste horário implica um compromisso de despachar o percurso de ida e volta em menos de 84 horas, situação resolvida a contento uma vez que estaria de regresso a Rambouillet em menos de 80.

Uma diferença de 8 horas relativamente a 2015, feita sobretudo à custa de uma menor distância (menos 10km) e de menor tempo de paragem (menos 4h das quais 2:30 roubadas ao sagrado descanso noturno, a menos um banho e a um dia sem fazer a barba).

A decisão de sair nas 84h houvera sido tomada no pós 2015, de modo a permitir passar de dia em locais onde nessa edição tinha passado de noite. Esta opção tem como grande inconveniente uma parte inicial relativamente solitária, uma vez que a maioria dos participantes sai na véspera (nas 80 e nas 90 horas). Ao longo do primeiro dia fui chorando a falta da festa da edição anterior, tendo tomado a decisão de que as futuras participações se fariam no seio do pelotão mais guarnecido.

Hoje, essa resolução já não será tão definitiva. A fórmula da saída matinal permite vencer a distância sem défice de sono e, passados os primeiros 200km, começam a alcançar-se os últimos da saída das 90 horas. Ao anoitecer cruzam-se os primeiros das 80 entrando, pouco a pouco, no grosso do pelotão, misturando-se ida e regresso numa indecifrável sopa de letras.

Abordemos agora a estratégia. Para quem quiser dormir verdadeiramente, a saída das 84 horas significará que o sono retemperador deverá ser planeado ao redor do controlo de Loudéac. Temente de que, à hora de chegada, o número de pretendentes ao retângulo de descanso fosse elevado, decidi procurar antecipadamente alojamento nas proximidades

Este iria constituir o acampamento base, permitindo um descanso a contento, longe da confusão dos dormitórios de campanha, tanto à ida como no regresso, com as duas primeiras jornadas divididas em 435 e 360km. Para além disso, localizado já no coração da Bretanha, facilitaria também um futuro reconhecimento turístico da zona, no final da aventura randonneur.

Depois, percorridos mais 305km, uma dormida em Mortagne-au-Perche permitiria deixar para o último dia apenas 120km, qual saída de uma manhã domingueira, chegando a Rambouillet sobre a hora do almoço.

Domingo, 18 de agosto

Dia de levantar cedo, que a festa estava a chegar.

Uma viagem equivalente à de Viana do Castelo a Lisboa separa o acampamento base do local de saída. A hora marcada para inspeção da bicicleta e levantamento dos documentos tinha sido marcada  para as 12:30. Com tempo chuvoso haveria que ser cuidadoso, não apressando a viagem.

A manhã de domingo é reservada à receção aos inscritos nas 84 horas. Os das 80 e 90, com o bike check feito na véspera debaixo de uma chuva forte que transformara o relvado em lodaçal, tentavam descansar para a partida da tarde, pelo que o ambiente estava bem mais calmo do que no sábado.

Com os documentos já recolhidos foi hora de procurar os participantes portugueses com acampamento montado no parque e, seguidamente, o almoço reservado nas proximidades. Depois, com a barriguinha cheia,  carregar armas e bagagens para o hotel, onde o quarto estaria disponível a partir da 14:00.

Estaria… O que encontrámos foi o caos instalado, com os randonneurs das saídas previstas para o domingo à tarde ocupando os alojamentos muito para além da hora contratada. Demoraria um bom par de horas até nos ser atribuído um quarto pelo que perdemos a partida dos grupos das 80 horas.

O resto da tarde foi gasto a ver a saída das bicicletas especiais, sempre espetacular, e dos primeiros conhecidos que alinhavam nas 90 horas.

Encontrar um local para jantar não foi pêra doce. Com os restaurantes quase todos fechados, que nem a afluência desusada mudou as rotinas, poucas opções existiam.

Finalmente algo se desenrascou. Jantar engolido, tempo de dormir, que a hora de acordar chegava depressa

Segunda-feira, 19 de agosto

Relativamente ao desenvolvimento do percurso em si, pouco há que relatar. A noite no hotel quase sobre o local de saída permitiu-me acordar sobre a hora contratada, embora com a noite ainda bem cerrada.

Liberados os cavalos, com andamento inicial controlado, logo tomaram o freio nos dentes e dispararam em perseguição dos concorrentes da véspera. Claro que, habituado a treinos e brevets solitários, deixei fugir os apressadinhos, incapaz de os seguir, evitando ao mesmo tempo eventual percalço que abortasse o passeio logo à nascença.

Com os primeiros laivos de sol, uma melhor visão da estrada iria permitir acompanhar alguns grupos menos numerosos e mais homogéneos, sempre descartados logo que a avaliação de risco o sugeria. Esta abordagem previdente seria ainda mais exacerbada após a passagem por um grupo parado na berma, rodeando uma participante sentada no chão, com a boca maltratada.

A significativa aragem frontal que se fazia sentir bem aconselhava a busca de abrigo no seio dos grupos que passavam mas, tanto a incapacidade para aguentar os ritmos irregulares como o receio de queda, conduziram a que a empreitada fosse sendo dirimida maioritariamente em solitário. Excetuam-se, um troço partilhado com quatro austríacos, abandonados assim que o grupo começou a crescer, um troço do terceiro dia avalado na cauda de um grupo conduzido por dois italianos e os derradeiros quilómetros do último dia.

Contrariamente a muitas opiniões por aí lidas, e beneficiando da aprendizagem de 2015, fui parando em todos os pontos de controlo oficiais, ficando o tempo de paragem médio abaixo dos 20 minutos.

Este tempo foi de sobejo para estampar o selo no cartão, recolher e libertar águas e comer. Reconheço que os repastos foram ligeiros e, com exceção do último, privilegiando o bar ao restaurante. Às paragens acima referidas apenas acresceram as duas noites dormidas no acampamento base, uma terceira em Mortagne e três outras pausas fora das estruturas oficiais, a detalhar posteriormente.

A minha abordagem às longas distâncias poderá assimilar-se à tarefa de um pescador. Lançada a linha a mesma vai sendo recuperada, enrolando o carreto, até chegar ao posto de controlo seguinte. Limpa-se o anzol, repõe-se o isco e faz-se novo lançamento em direção à paragem seguinte. Pouco a pouco, o tempo vai passando, quase sem se dar por isso. As memórias sobrantes, quais peixes recolhidos que se acumulam no interior do cesto, vão-se misturando umas com as outras, perdendo o nexo espacial ou temporal.

Villaines-la-Juhel foi palco do primeiro encontro luso. A Filomena aguardava o Pedro e o Tiago que tinham saído no grupo “Y”, um pequeno quarto de hora após a minha partida. Simpática, bem que tentou aligeirar as minhas tarefas, dispondo-se a “correr” atrás de mim oferecendo os seus préstimos que eu, muito malcriadamente fui ignorando. Mil desculpas Filomena.

O cruzamento com o grupo dos primeiros participantes da saída das 80 horas foi feito ao fim da tarde, talvez entre Tinténiac e Quédillac. Também por esta altura, o céu começou a ser invadido por maciças nuvens que ameaçavam despejar o conteúdo sobre os viajantes, tal como se veio a verificar. Embora a maioria dos ciclistas fossem parando para reforçar as vestes, o azul remanescente e os últimos raios de sol fizeram com que ignorasse os pingos e continuasse a pedalar assumindo a molha inconsequente.

A jornada chegaria ao fim, cerca das 23:30, com detenção retemperadora até às 6 horas do dia seguinte.

Terça-feira, 20 de agosto

Manhã de nevoeiro cerrado obrigando a precauções redobradas, que os óculos não tinham escovas, substituídas pelos dedos enluvados. Com o sol já nascido cruzo o primeiro conhecido de regresso, quase homónimo mas falando galego. Era o José Antonio Ferreiro, dos Randonneurs Galicia, com a jersey azulinha que trouxeram para estrear na festa. Trocados os votos benfazejos lá prosseguimos em sentidos opostos.

Carhaix seria palco do segundo encontro luso.


O meu parceiro Manuel Miranda, também de regresso, preparava-se para sair, depois de carimbar o cartão, com intenção de se reabastecer mais à frente, face à superpopulação do local. Eu fiquei, resolvendo as tarefas rotineiras. De facto, seria uma das minhas maiores paragens, despendendo uns desmedidos 24 minutos até recomeçar a pedalar.

Faltavam apenas 90km para Brest que, em 2015, tinham sido feitos no início da madrugada, ainda de noite. Desta vez, o sol já ia alto, permitindo apreciar as vistas e saudar os reconhecidos que faziam o caminho de regresso, lusos e galegos, verdes e azuis, emergindo do pelotão multicolor. 

O ponto da entrada em Brest é a travessia da Ponte Albert Louppe, local de paragem para a foto clássica.

Logo depois apanho o Zé Almeida e o Arlindo Beicinha que, qual casal de velhos rezingões, se aprestavam também resolver a primeira metade da tarefa em curso. Chegámos juntos ao controlo. Eles ficaram mais um pouco e eu fugi, que tinha encontros agendados, um com o Roland e outro com Sizun.

Roland é um randonneur francês, autor do blog cyclo-long-cours.fr, que vem assumindo a hercúlea tarefa dos registos e estatísticas dodecaudaxianas, habituée das longas distâncias, com participações no PBP, LEL TCR, TAW, etc., obrigado por problemas de saúde a uma pausa nas lides ciclísticas.

Como alternativa, tomou nas mãos a empreitada de fotografar os participantes, quer da TCR quer do PBP, identificando e disponibilizando as fotos tiradas. É só procurar no seu blog.

Desconhecendo em concreto tanto pessoa como o local onde estaria, foi com imenso agrado que o consegui encontrar, trocando palavras de reconhecimento e deixando-lhe uma pequena lembrança dos Randonneurs de Portugal.

Obrigado Roland pelas fotos.

Sizun! Ah, Sizun! É uma povoação interessante, com a sua bonita igreja pontuando o cimo de uma colina, e que marca um momento de relaxe no PBP para muitos randonneurs.

Em 2015 fiz uma pausa para comer um crepe acompanhado de cidra e, em 2019, repeti. Assim se faz uma tradição. Até 2023.

Cumpridas as tarefas principais, só… faltava regressar a Rambouillet.

Carhaix de novo, Ste. Nicolas e a noite instala-se, pela segunda vez. Num cruzamento, dois voluntários alertavam para as condições da estrada que se seguia. Foi realmente um dos troços mais custosos de toda a randonnée. Descida com estrada estreita, piso em mau estado, tenebroso (literalmente)! Não havia necessidade. Quem sabe? De dia? Teria os seus encantos!

Loudéac e nova jornada que chega ao fim. Pausa das 23:45 às 7, desta vez com um amanhecer limpo e menos gélido. Nubladas, só as memórias.

Quarta-feira, 21 de agosto

Encontro com Olivier Chabirand, de sandálias, como eu. O seu pai, Jean-Claude, era um dos três randonneurs que participava no PBP pela 12ª vez. Trocámos palavras de conhecimento, depois instou-me a prosseguir pois estava num ritmo mais baixo do que o meu.

Ironia! A minha chegada a Rambouillet seria feita na roda de um comboio puxado por ele e uns belgas, pujante, na sua juventude.

Por falar em comboios, parte dos quilómetros que se seguiram a Villaines foram ultrapassados à boleia de dois italianos que marcavam um ritmo forte mas sustentável para mim. Como de costume, o comboio foi engrossando e, à passagem por Mammers, aproveitei a oferta do clube local para uma pausa restaurativa (uma das poucas fora dos locais oficiais e também a passar a tradição, uma vez que plagiada de 2015), pronto a prosseguir sozinho. No entanto, os quilómetros que restavam para Mortagne, acabariam por ser feitos na companhia do Pedro, que entretanto me apanhara.

Último descanso noturno: Mortagne-au-Perche, 22:00 às 6:15. Primeiro em local disponibilizado pela organização. Claro que não teve a qualidade dos dois primeiros, mas deu para descansar.

Na grande sala refeitório, encontro com algumas caras conhecidas — Emilio (outro José) De La Higuera, Jose Ramon Valcarce, Javier Costas — rostos cansados que se aprestavam a afrontar a noite para chegar a Rambouillet, enquanto eu me “resignava” às condições do dormitório.

Quinta-feira, 22 de agosto

Saída com o alvorecer e primeiros quilómetros fresquinhos. À passagem por Neully-Sur-Eur um café e uma pastelaria abertos, povoados por randonneurs ensonados, convidavam a uma nova pausa. Bolo adquirido na pastelaria e trasladado para o café, aproveitando a paragem para remover camadas. Quase pronto para sair vejo chegar o Pedro, rendido às mesmas tentações que me tinham interrompido a viagem.

O resto da viagem foi resolvido a dois, com uma última paragem em Dreux, para controlo e uma refeição pesada, festiva, esbanjando uma meia hora inteirinha.

Chegada a Rambouillet antes do meio-dia e meia, com direito a volta de consagração, em modo gravel, no pátio da Bergerie Nationale.


Após entrega do cartão para o último carimbo e recolha do troféu, haveria ainda tempo para uma última refeição de campanha.

Por fim, recolhido pela minha sensorte, “certamente grata pelos curtos” 800km da viagem de ida e volta, seria hora de regressar ao acampamento base e às vacances familiares, primeiro na Bretanha e depois nos Pirinéus.

Epílogo

Finalmente.

Responder às questões usuais seria repetir a última parte da minha crónica de 2015. Os conselhos aí prestados foram válidos, apurados e recomendam-se.

Bem, repetir talvez não. A hora de saída no PBP 2023 é ainda uma incógnita e, enquanto o tempo não passa, boas leituras

Olhando para a fotografia lembro-me agora que, da viagem, ficaram algumas, pequenas mazelas. Uma inflamação no tendão de aquiles direito, possivelmente originada pela rigidez dos refletores, deixados nos tornozelos durante os dois primeiros dias, e umas picadas nas patelas dos joelhos.

Com uma diagonal apontada para dali a 10 dias, o tempo de repouso poderia não se revelar suficiente…