"...quando dou por ela estou em Brest, desta vez noite clara a proporcionar uma visão magnífica lá do alto da ponte..."
Randonneurs Portugal Nº20120060
Paris Brest Paris 2019
PBP 2019 | Carlos Herlander
Tal como previsto, o ano de 2019 chegou num ápice e com ele a 19ª edição do Paris-Brest-Paris. Muita coisa mudou na minha vida nestes últimos 4 anos, mas não o propósito de voltar a participar no PBP e viver de novo todo o ambiente que caracteriza este evento e faz dele uma espécie de Meca para a malta do pedal.
E assim, no dia 15 de agosto, após um valente almoço em sistema de buffet num restaurante ribatejano, conhecido pelas ementas de combate, lá parti para França na companhia dum velho amigo, companheiro de muitas aventuras e que também já foi um grande entusiasta desta coisa das bicicletas, mais ou menos uns 30 ou 40 kg atrás. Este amigo, de seu nome José António, mais conhecido por “mano velho”, teve a amabilidade de retirar os bancos de trás do seu jeep, o que me permitiu levar a bicicleta toda montadinha, pronta a arrancar. Graças a ele, desta feita a logística do PBP não me deu qualquer dor de cabeça.
Após uma viagem de quase 2.000 kms…
pelo caminho fizemos um pequeno desvio até Serviéres Le Chateau, e 28 horas depois, lá chegamos a Trappes, localidade que fica a cerca de 16 kms de Rambouillet. Chegar a Trappes foi fácil, o mais complicado foi dar com o diabo do hotel, não que ele fosse pequeno (pequeno era o quarto!). Falhados os métodos tradicionais, lá tivemos que dar o braço a torcer e recorrer ao Tom Tom que em pouco tempo nos pôs à porta do hotel.
No dia seguinte, foi só enfiar a “burra” no carro e levá-la a Rambouillet ao bike check, sempre debaixo duma chuva miudinha mas persistente. Felizmente cumpriu-se o velho adágio popular: bike check molhado, PBP abençoado!
Um pormenor que me chamou à atenção enquanto deambulava pela Bergerie Nationale durante o bike check, foi o facto de quase não ver bicicletas típicas de randonneur, daquelas com quadros em aço, suportes de carga e guarda- lamas a sério. Em contrapartida, as bicicletas de carbono dominavam a paisagem, sinais dos tempos, o que na minha opinião até se compreende bem. Basta pensar nas subidinhas que apanhámos ao longo dos 1.200 kms e, além disso, não podemos esquecer que muitos foram aqueles que tiveram que andar com as bicicletas às costas em aeroportos, gares de comboios e afins. E quando se trata de andar com carga às costas, eu também prefiro que ela seja de carbono em vez de aço.
Eis que chegou o domingo, dia de saida para o PBP…
sem chuva e com o Sol a fazer a sua aparição, para alívio de todos os participantes, principalmente daqueles como eu mais dados a tempo seco e temperaturas elevadas. Com saída marcada para as 19h00, cheguei à Bergerie Nationale umas duas horas antes para poder viver aquele ambiente único que faz com que o PBP tenha aquela mística especial. No meio da multidão de randonneurs de várias proveniências e credos, vejo ao longe o que me pareceu ser um pescador da Nazaré fora do seu habitat, mas afinal era o nosso companheiro de luta Arlindo Beicinha, todo estiloso com o seu magnífico barrete preto. Quando estamos longe de casa, ainda que por pouco tempo, é sempre bom ver algo que nos recorde este cantinho à beira mar.
Depressa chegou a hora da verdade e dou comigo na grelha de partida dos “Ms”, já com o cartão de percurso a jeito para a carimbadela da praxe. Enquanto via carimbarem-me o dito cartão, num relance passou-me muita coisa pela mente. Cartão guardado, partida dada e lá vou eu, primeiro inserido em grupos mais numerosos, o vento contra assim recomendava, depois muitas vezes a solo.
Os kms foram passando, o Sol ia trocando de lugar com a Lua e vice-versa, a preocupação sempre presente de encher bem a mula (como se diz no Ribatejo) em todos os postos de controlo (atenção, não me falem em esparguete à bolonhesa nos próximos anos!) e quando dou por ela estou em Brest, desta vez noite clara a proporcionar uma visão magnífica lá do alto da ponte.
Metade já estava, agora era hora do primeiro descanso a sério…
Tirei o cobertor de emergência do respectivo pacote (voltar a pô-lo lá dentro é tão fácil como fazer o PBP a penantes e com os sapatos ao contrário), enrolei-me bem nele e dormi umas horitas sob a mesma árvore que já me tinha servido de tecto em 2015.
Oiço o despertador do telemóvel a tocar, acordo meio desnorteado mas depressa caí em mim e fiquei mais tranquilo. Afinal não eram horas de ir para o trabalho, mas sim de fazer a 2ª parte do PBP. Contas feitas, começava a acreditar que estava ao alcance o objectivo a que me propus desta vez: chegar ao fim ainda de dia, pois na meta à minha espera iam estar filhote, sobrinhos, irmã, cunhado e o já referido amigo José António. Tirando este último, os restantes estavam alojados perto da Disney, a duas horas de Rambouillet, pelo que eu tinha que chegar a horas decentes para eles também poderem regressar cedo ao hotel, mais por causa dos miúdos.
Já o Sol ia alto quando inicio o regresso a Rambouillet. Durante muitos kms cruzei-me com os randonneurs que ainda iam a caminho de Brest. A dada altura, com o Sol a bater de chapa nos olhos e numa descida generosa, tenho uma daquelas visões que não lembram a ninguém. Sei que em tempos alguém já viu anões a dançarem à beira da estrada, mas eu agora estava a ver a silhueta dum enorme pato a andar de bicicleta mesmo à minha frente. Quando já pensava que tinha ingerido algum alimento contaminado com uma qualquer substância alucinogénia, eis que se faz luz ou melhor sombra e consigo vislumbrar creio eu um nosso velho conhecido que já enrolou corrente em terras lusas, o simpatiquíssimo randonneur Sergey que seguia pacatamente com o seu inconfundível equipamento tipo bandeira da Austrália, mas todo dobrado para a frente, com as pernas encolhidas, os joelhos próximos do queixo e os pés fora dos pedais esticados em direcção ao chão. Ora, visto de trás e com o Sol a dar-me nos olhos o moço parecia mesmo um pato.
Isto à primeira vista parece esquisito mas tem uma explicação. É que este moço pedala em single speed, com um único carreto de cada lado da roda e um único prato na pedaleira, sendo que a pedaleira acompanha o movimento da roda. Nas descidas mais pronunciadas, a pedaleira atinge uma rotação tal que pôr os pés nos pedais deve ser mais ou menos a mesma coisa que tentar pôr os dedinhos numa varinha mágica em funcionamento. Fui com o Sergey até Carhaix-Plouger e digo-vos uma coisa.
Fazer um PBP em single speed não é para todos…
No plano e a descer a coisa ainda lá vai, mas a subir garantidamente que este moço pagou os pecados todos e ainda regressou a casa com crédito para mais alguns.
Outra situação mais ou menos curiosa ocorreu entre Fougeres e Villaines-La-Juhel. Seguia eu de madrugada, mais ou menos congelado, pois tinha acabado de sair de Fougeres onde dormi duas horas (desta vez sob as estrelas que a árvore ficou em Brest) e ainda não tinha conseguido aquecer, quando junto a uma casa tipicamente rural vejo uma luz proveniente dum candeeiro a gás colocado em cima duma mesa onde não faltavam bolachas e bolos de todos os feitios. Assim que paro, aparece-me logo um casal de velhotes, enrolados em mantas. Tinham dado um pulo a casa para renovarem o stock de café quente. Em noite fria, café a ferver acabado de fazer e bolinho caseiro não é para todos. Brevemente, alguém em França irá receber um postal do Ribatejo acompanhado duma garrafa de vinho do Porto. É por estas e por outras que o PBP é o que é!
E lá continuei eu sempre de olho no relógio até que no posto de controlo de Mortagne-au-Perche, quando procurava o local para entregar o tabuleiro e louça, encontro a 2ª cara conhecida, o companheiro Manuel Miranda que se preparava para almoçar. Após uma breve troca de palavras fiz-me de novo à estrada.
Entretanto chego a Dreux, já cheirava a meta, faço umas contitas e concluo que salvo algum imponderável ia chegar a Rambouillet ainda de dia, podendo mesmo descansar à vontade e aconchegar o estômago tranquilamente. Saio de Dreux em direcção a Rambouillet sempre a esfarrapar, como se diz na gíria, quanto mais pedalava parecia que mais força tinha. Quando dou por ela já tinha o muro da Bergerie Nationale do meu lado direito, lembro-me que a partir dali até à meta abrandei o ritmo de propósito, como que em jeito de despedida e para saborear aqueles últimos momentos. O Sol já baixo no horizonte também se prestava a estas mariquices.
Entro na Bergerie, sigo aos “ésses” por entre carros e pessoas que vinham em sentido contrário (único reparo que faço à organização do evento) e junto ao pórtico da meta lá estava a minha entusiástica e ruidosa claque particular, todos de t-shirt igual e com a bandeira portuguesa, Só por este breve momento valeu a pena todo o sacrifício e esforço dispendido, não só durante o PBP, mas também durante as muitas horas de treino que antecederam o mesmo. Sim, eu treinei para o PBP. Acho que se me tivesse limitado a “andar de bicicleta de forma programada”, talvez tivesse ficado pelo caminho.
Entregue o cartão à organização, dirigi-me à zona dos comes e bebes com a minha comitiva para a celebração da praxe. Oiço uma voz a chamar-me, olho para o lado e lá estava o Randonneur Mário Mota que já tinha cortado a meta há quase duas horas. Ainda houve tempo para ver mais uma cara conhecida, a Sofia que teve a coragem de me felicitar e cumprimentar com dois beijos. O que vale é que nos encontrava-mos numa Bergerie onde é natural que numa zona ou outra haja uns cheiros meio esquisitos…
Missão cumprida, cheguei ao fim são e salvo…
sem ter tido qualquer contrariedade pelo caminho, dores, lesões, furos ou problemas mecânicos. Todos os potenciais factores de risco foram eliminados à partida graças à experiência retirada do PBP 2015.
Ao concluir o PBP também encerrei um ciclo na minha vida. Vou agora dedicar-me a outras aventuras desportivas, mas desta feita com os pés no chão.
Uma palavra de agradecimento a todos quantos me apoiaram, desde a família aos amigos.