De Paris a Brest a Paris - Uma saborosa loucura
Tiago Guapo
Randonneurs Portugal Nº20130137
Paris Brest Paris 2015
Não sou um ciclista. Nem sequer um randonneur experiente
Comprei uma bicicleta de estrada em Outubro de 2012. Não andei até Abril de 2013, quando fiz 45km. Em Maio de 2013 descobri o PBP no YouTube e decidi que tinha que participar neste evento. Não sei explicar o porquê. Talvez porque todos me disseram que era louco. Talvez pelo simples desafio de fazer o impossível. Talvez.
Encontrei os Randonneurs Portugal e em Outubro de 2013 fiz o meu primeiro Brevet de 200k. Em 2014 fiz os 200km, os 300km, os 400km e desisti nos 600km por pura falta de experiência. Mas continuei sempre com o PBP em vista, muito embora por várias vezes tenha desanimado e pensado em não ir.
As férias da família foram à volta do PBP. 3 Semanas, como sempre temos feito, mas com o olho em Paris. 1ª Semana na Dordogne, a passear. Segunda no PBP e terceira a passear por Paris. O apoio foi fundamental. A Sara, a Rita, o Pedro e a minha mãe.
Saint-Quentin-en-Yvelines – Mortagne-au-Perche Etapa 1 138km – Chegada em 6h 5min Paragem 1 hora.
A saída aconteceu às 18h30min e a ansiedade imperava. Saí com o Paulo Gomes, o Zé Almeida e o Luís Inácio (o trio maravilha), sabendo á partida que tinham um andamento diferente do meu mas com vontade de conseguir passar a noite acompanhado porque facilita principalmente em termos de ânimos mentais. Foi um início cuidadoso, sempre com a mensagem do Pedro presente de ter muito cuidado para não cair nos primeiros 50km e não deixar cair nada da bicicleta, algo comum de acontecer com tantos ciclistas na estrada.
Conseguimos manter um ritmo interessante e o apoio das pessoas nas várias localidades manteve o ânimo em alta.
Na chegada ao Posto de Suporte, a confusão era grande. Havia muita gente na zona de comidas quentes e optámos por ir para o pão. Ainda assim perdemos demasiado tempo. Foi também altura de vestir as roupas para o frio que já se fazia sentir e que se acentuava com uma paragem. Vesti os pernitos, a camisola merino e o casaco gore-tex. Excelente opção que me manteve longe do frio a maior parte do tempo.
Noite cerrada. Frio. Poucas pessoas nas ruas mas muitos ciclistas. Nesta fase tenho a noção clara que os 1200km tomaram conta de mim. Comecei a achar que tudo isto era parvo, que duraria uma eternidade, que nunca devia ter começado. Que ainda mal tinha feito 150km e já estava com dificuldades pelo que seria impossível aguentar até ao fim. Foi também aqui que começaram, estranhamente, dores no rabo (era cedo de mais para tudo isto). É nestas fases que a companhia ajuda e aqui sem dúvida ajudou. Também a presença de filas de outros ciclistas me manteve interessado e curioso.
A quantidade de almas deitadas nas bermas a dormir, sem manta térmica e em posições do mais estranho que já vi
Não posso deixar de me lembrar da quantidade de almas deitadas nas bermas a dormir, sem manta térmica e em posições do mais estranho que já vi, maioritariamente asiáticos. Se estavam assim na primeira noite, não consigo imaginar o resto do percurso. Felizmente o sono não passou perto de mim. Uma paragem junto a uma casa que tinha uma família inteira a dar café aos que pedalavam também me mostrou melhor ao que vinha e com o que é que poderia contar.
Villaines-la-Juhel – Fougères Etapa 3 88km – Chegada em 15h44m Paragem 30min
Com o início do dia, os primeiros raios de sol trazerem animo. Pelo menos a mim trazem. Uma paragem numa boulangerie de rua – uma banca com umas pessoas a venderem pães e croissants (comprei um pão com queijo e pimento, um com chouriço e um croissant) puxou pela minha vontade de pedalar e mostrou que estou aqui para ver e viver este evento.
Os raios de sol trazem novas vistas. Campos abertos e a beleza do interior de França.
Mantivemo-nos juntos até Fougeres, onde comi algo quente (massa, claro) para dar força às pernas que ainda assim estavam prontas para muito mais.
Fougères – Tinténiac Etapa 4 54km – Chegada em 18h45m Paragem 50min
A beleza de Fougeres ficou na retina. Agora com comida quente no estomago sentia que a mente estava já em Tinteniac onde tinha a Sara e os miúdos á minha espera. Aqui sentia-me bem, forte das pernas e as dores no rabo não pioravam, o que já não era mau. Só doía.
Nesta altura separamo-nos. Uns queriam parar para comer e descansar e eu só pensava em chegar rápido á família. Falámos num reencontro em Tinteniac para seguirmos juntos, mas nestas coisas das distâncias longas, nunca se sabe.
Aquecido pelo sol e puxado por quem estava á minha espera, voei até Tinteniac.
Não voei, andei bem para os km que já levava mas sempre tendo em conta os que ainda faltavam. Pedalei com um grupo de cerca de 8 tipos, 3 dos quais Ucranianos que andavam demais para mim. Mas acompanhei o grupo durante uns quilómetros.
É de facto algo estranho. Tanto pensei em chegar, mas quando cheguei sabia que não podia ficar o tempo que queria. Tinha planeado uma paragem de cerca de 1hora pelo que pedi á minha filha para me expulsar às 14horas de forma a cumprir o horário. Ela cumpriu o seu papel na perfeição e avisavame a cada minuto que passava. Roupa lavada, comida boa, fruta fresca e beijos de todos. Que mais se pode querer? Fiquei animado. Estava pronto para continuar.
Por esta fase o joelho já estava a moer. Decidi começar a tomar anti-inflamatórios para evitar que a dor crescesse.
Tinténiac – Loudéac Etapa 585km
a) Quedilac 26km chegada em 20h40min Paragem 20min.
Este foi o primeiro percurso que me vi a pedalar sozinho.
Sozinho é apenas uma forma de falar porque, na realidade, havia dezenas de ciclistas na estrada e estava permanentemente a passar ou a ser passado por alguém. A verdade é que nunca encontrei um grupo com a minha forma de andar. Gosto de rolar nas descidas e em plano e descansar nas subidas, ou seja, ganho balanço quando desço e ao subir tento ter uma subida “de borla” e quando não dá, aumento a cadência mas não esforço as pernas. É a minha forma de poupar energia. Quando os outros grupos são diferentes, não me junto. O Posto de Apoio de Quedillac era acolhedor. Tinha comidas quentes, queijos e croissants. Como tinha comido á pouco tempo, foi uma paragem rápida apenas para comprar qualquer coisa de comida para estar comigo e beber um café quente.
b) Loudeac 59km Chegada em 23h48m Paragem 1h.
O apoio nas vilas continuava e o constante “bone courage” anima sempre.
Também a quantidade de crianças nas ruas a esticarem a mão para os ciclistas darem “uma palmada” mostram o envolvimento de todos e o seu apoio. Sempre que passava por alguém a apoiar não me cansava de responder com um sentido “merci”. Ao chegar a Loudeac encontrei o Rui. Excelente companhia para os difíceis km que por aí vinham. Por esta altura, cruzamamo-nos com o Paulo, o Zé e o Luis nos PC.
Loudéac – Carhaix Etapa 688km
a) Pelem – 45km Chegada em27h35min Paragem 40min
Segunda noite a pedalar e claro que o corpo se sentia cansado e com sono. Saímos os 5 juntos mas nas subidas acabámos por (eu e o Rui) seguir mais á frente.
A companhia do Rui foi crucial.
Pedalávamos forte nas descidas e em plano e descansávamos nas subidas. Perfeito. As dores no rabo eram já bastante incomodativas, mas nada que me fizesse parar. O problema era o que ainda faltava, e mais uma vez sentia que isso poderia ser um problema.
Pelo meio, na vila de Saint-Martin-des-Prés, cantigos aos ciclistas, mas desta vez acompanhados de uma bela Salsicha et frites. O rally tascas estava em andamento. Quando chegámos, tinha pensado em dormir. A confusão do Posto fez-nos repensar. Estando a cerca de 30km do posto seguinte, a opção foi comer e continuar.
b) Carhaix – 33km Chegada em 29h45m Paragem 4h
Mais um percurso noturno. Foi cerca de 1h45min que pensava mais em chegar que em rolar. Quando chegamos, decidi dormir nos colchões do PC, pagando 4€ mas garantindo algum conforto. Havia fila para a zona de dormir e acabei por perder cerca de 45min só para me deitar. Dormi cerca de 1h45min e acordei com duas buzinas a ressonar, uma de cada lado. Ainda assim, este descanso fez milagres.
Acordei a sentir-me bem, sem sono, e pronto para continuar.
Comi, reencontrei o Rui e juntaram-se também o Paulo, o Zé e o Luis para os km seguintes. Foi uma paragem demorada, de cerca de 4horas, para apenas 1h45m a dormir.
Carhaix – Brest Etapa 7 89km – Chegada em 38h42min Paragem 30min
Sabia que se tratava de uma etapa dura com muitas e longas subidas. A dormida ainda que curta foi revigorante e uma paragem em Sizun e doisfolhados de maçã quentes e um café prepararam-me para o resto do sobe e desce até Brest.
Nasceu o dia e mais uma vez o ânimo voltou.
As vistas eram magníficas com a cacimba da manhã e o nascer do sol. Boas horas para quem anda de bicicleta, mesmo que com 550km nas pernas, a mente manteve-se animada pelo que via e cheirava. O caminho até Brest foi duro e por essa altura juntámo-nos ao Zé Ferreira, sempre tranquilo e com um controlo evidente do seu percurso. A beleza da ponte de Brest recolocou um sorriso na minha cara. Umas fotografias, e foi seguir caminho para Brest. A paragem foi curta, estávamos animados e seguimos para novo sobe e desce.
Brest – Carhaix Etapa 8 84km – Chegada em 44h20min Paragem 20min
Sabendo que me esperava mais uma dura fase de subidas, voltei a colocar o meu ritmo. Cadencia alta sem grande esforço. Encontrámos o Miranda no caminho que se juntou a nós até Sizun onde voltei a comer dois belos folhados de Maça. Cada vez que entrava numa boulangerie, apetecia-me comprar tudo o que via para comer.
O Miranda seguiu enquanto eu e o Rui apreciávamos as tartes e reabastecíamos de água.
As subidas longas obrigaram-me a um esforço extra no joelho que rapidamente se sentiu e as dores foram aumentando. Já não tinha anti inflamatórios e a cada pedalada a dor fazia-se sentir. Não eram dores que impedissem o andar, mas 80 dores por minuto, tendo em conta o que faltava, ia ser complicado de gerir. Parei na primeira farmácia à entrada de Carhaix e comprei tudo que eles tinham para as dores no joelho (anti inflamatórios comprimidos e gel, e spray tipo gelo). Subi meio cm o selim, tomei um comprimido e spray no joelho. Tinha que melhorar.
Carhaix – Loudéac Etapa 9 88km
a) Pelem – 33km Chegada em 47h00min Paragem 25min
A paragem em Carhaix foi curta para aproveitarmos o fim de tarde e o belíssimo pôr-dosol na estrada. Com as minhas dores no joelho disse ao Rui para seguir que eu ia colocar um andamento ligeiramente mais baixo e assim foi. Continuei ao meu ritmo, controlando as dores que sem desaparecerem, também não pioraram, o que me permitiu ainda assim, manter uma velocidade interessante.
b) Loudéac – 45km Chegada em 50h17m Paragem 35min
No caminho para Loudeac, nova paragem na vila das salsichas e batatas fritas.
Mesmo sozinho mantive o espirito rally tascas, e que bem que me soube.
Dois dedos de conversa com um alemão pouco falador e que por muito que eu estivesse interessado em conversar, ele demorava tanto tempo a raciocinar que teria que lá ficar umas duas horas só para perceber de onde ele era. Mas era simpático. Segui para Loudeac onde parei e comi calmamente, num posto praticamente vazio na zona das comidas e onde um triangulo de Camambert me soube a céu. Estava eu a preparar-me para seguir caminho, e um novo Rui, de banho tomado e roupa lavada, aparece ao meu lado.
Loudéac – Tinténiac Etapa 10 85km
a) Quedilac 59km Chegada em 54h25min Paragem 40min
De novo na companhia do Rui, lá seguimos caminho. Vinha aí mais uma noite e desta tinha mesmo que dormir. Tinha pensado chegar a Tinteniac e dormir no carro, mas não sabia ainda se conseguiria ou se teria que dormir em Quedilac.
Pelo caminho mais uma paragem à rally tascas, desta vez no “homem dos postais”.
Um crepe, uma fatia de bolo e um café, umas fotografias e um grande “merci”. Ficamos com a morada para onde enviar o postal, que será enviado dentro de mais algum tempo, mal consiga restabelecer a minha vida quotidiana. Quando chegámos, o posto de Quedilac era uma confusão. Não havia espaço para dormir e eram tantos os randonneurs que decidimos seguir até Tinteniac.
b) Tinteniac 26km Chegada em 56h30min Paragem 4h30min
Tinha os olhos postos na chegada. Só pensava em dormir.
O cansaço era evidente e foi neste percurso que “vi” um anão a dançar na beira da estrada.
Não foi uma alucinação apenas porque percebi que estava a “ver coisas”. As riscas brancas da estrada também já pareciam que mexiam e as histórias do Rui com os seus crocodilos gigantes à beira da estrada perto de Sagres mantiveram o ânimo e os olhos abertos. Ao chegar, mais uma vez o apoio da Sara foi fundamental. Estava cansado e meio perdido. Um banho quente foi providencial. Roupa lavada e toca a dormir no carro, com a Rita a dormir no banco ao meu lado. Dormi cerca de 2h30min. A Sara acordou-me e eu apressei-me a comer, trocar pilhas e roupas para o resto da viagem. Estava a 100 á hora e stressado. Queria manter o plano o mais possível e o meu stress passou também para Sara. Mais tarde viria a pensar neste momento e a ficar um pouco triste com ele. A Sara fez mais do que lhe era pedido e ainda assim, consegui ser desagradável. Lesson Learned… nunca descarregar em quem nos está a apoiar.
Tinténiac – Fougères Etapa 11 54km Chegada em 63h40min Paragem 35min
Na saída estava fresco e com vontade de pedalar. Juntei-me a um Grego e um Alemão que se iam revezando na frente, mas rapidamente percebi que o ritmo, particularmente nas descidas, era demasiado forte para as dores no joelho. Eles seguiram. Fiquei de novo sozinho. Encontrei o Paulo Gomes que estava agora sozinho também. Estranhei a separação do trio, mas não pensei muito no assunto. Acabei por passar por ele e seguir, mas uma paragem na vila seguinte para um café fe-lo voltar a passar-me. Continuei a um ritmo interessante até que, ao chegar a Fougères, vi a carrinha do Pedro, a já famosa Magical Van, como o Pedro gosta de lhe chamar.
O sorriso da Filomena deu-me novo alento e dois dedos de conversa mostraram que eu ainda estava bem.
Esperei 5min pelo Pedro, pensando que pelo menos teria uma boa companhia durante uns quilómetros. Não o queria prender e tentei deixar isso claro. Carimbo e comida rápida, e lá seguimos para Juhel.
O que aí viria eu não imaginava. Se tivesse imaginado, provavelmente teria parado ali.
Fougères – Villaines-la-Juhel Etapa 12 88km Chegada em 68h50min Paragem 1h
O Pedro é boa companhia. Transmite a experiência dos anos que tem de longa distância. E fá-lo com prazer. Além disso é, normalmente, bem disposto. Isso daria pelo menos para nos manter juntos durante uns quilómetros. Depois logo se veria. O andamento dele é muito superior ao meu e se há coisa que não gosto é ser uma âncora para os outros.
Cerca de uma ou duas horas depois de sairmos, com um ritmo bom e sem problemas, lembro-me de me virar para o Pedro e dizer “Pedro, acho que me está a custar levantar a cabeça” – “Pois, já tinha reparado nisso” respondeu ele. Falou que já tinha lido bastante sobre isto (também li num livro sobre a RAAM) mas que nunca tinha visto. Parámos e ele começou a inventar. Camelback com uma camara de ar atada ao capacete, prende, estica, puxa e pensei “bem, não preciso disto, mas ele fica contente por experimentar estas coisas, e a mim não me custa nada”. Segui com o pescoço um pouco mais direito mas ainda sem pensar no que ai vinha. Rapidamente o Pedro me diz que temos que chegar a Juhel e que lá a Filomena tem a solução para o meu problema.
Foi de facto impressionante a rapidez com que um simples desconforto se tornou numa dor insuportável de cada vez que levantava a cabeça para ver a estrada. Tive que tirar os óculos porque os aros me faziam ver menos meio centímetro. Tive que esforçar muito o pescoço para poder continuar a ver a estrada. Tinha que ser.
Aqui começa um novo PBP. Aliás, começa algo que provavelmente nada tem a ver com o PBP, com bicicletas ou mesmo com desporto.
Quando cheguei a Juhel nem apreciei o apoio das dezenas de pessoas, crianças de escolas inteiras e barulheira que por ali se vivia. Tinha a noção clara que o pescoço era um showstopper. Assim não podia mesmo continuar. Não eram pernas, não era cabeça, não era sono, era o pescoço. Não estava preparado. Não conseguia ver a estrada.
Lembro-me que cheguei à carrinha, encostei a bicicleta e fui chorar para a parte de trás da carrinha. Era um choro de quem nada podia fazer para alterar o que estava a acontecer. Ia ter que desistir.
A Filomena aparece, sempre com o seu sorriso, e mostra-me uma cervical em esponja, para poder continuar. Ri. Ou chorei. Ou ambas. Não sabia bem o que dizer. Ia pedalar com aquilo? Valia mesmo a pena? Faltavam cerca de 210km. Pelo menos arranjem-me um lenço para tapar isto… e há que manter um certo estilo a pedalar.
Fiz um pedido à Filomena. “Não me deixes desistir se eu não puser a minha saúde em perigo, mas obriga-me a desistir se puser”. Ela riu, aceitou, e disse que eu ia conseguir. Pedi para ir ao centro médico perguntar se isto poderia levar a uma lesão permanente. O “médico” disse que não, quase sem olhar, e que havia muita gente assim. A resposta foi rápida e pouco convincente, mas chegou para mim. Telefonei à Sara e expliquei a situação. Depois de falarmos um pouco ela disse “mas estás com o Pedro? Então vai até conseguires”
Villaines-la-Juhel – Mortagne-au-Perche Etapa 13 81km Chegada em 74h25min Paragem 1h
Seguimos caminho, eu torto e o Pedro… o Pedro. O que é que se pode dizer. Tive a noção que o Pedro ia comigo até eu conseguir. Não gostei inicialmente da ideia, porque senti que lhe estava a estragar a festa. O Pedro transformou-se no meu guia. Ia á frente e dizia direita, esquerda, subida, descida. Eu pedalava como podia. Mesmo com a cervical, pouco via. As dores cresceram exponencialmente e a partir daqui foram quase 180km de sofrimento. O PBP tinha acabado para mim. Agora queria chegar, receber uma medalha e poder dizer que tinha conseguido. Infelizmente quem via, não acreditava que isso fosse possível.
Pelo que me lembro, este percurso fez-se. Bem ou mal. Fez-se. Estava desesperado. As dores eram muitas e só de pensar no que ainda faltava, pior ficava.
Para ver a estrada tinha que guiar só com uma mão e segurar a cabeça com a outra. Ainda assim tentávamos manter algum humor.
Atrás do Rufus é que não podemos ficar, temos uma reputação a manter
Chegámos a Mortagne. Chegámos. À chegada ia indo de frente contra um carro, larguei uns quantos palavrões ao coitado do condutor que não tinha culpa nenhuma. Em Mortagne reencontrámos o trio maravilha mas foi um reencontro rápido. Comi e nem sei bem o que aconteceu. Já era noite. Sabíamos que tínhamos que seguir para Dreux e que lá poderíamos dormir um pouco. Eu tinha sono, dores insuportáveis no pescoço e pouca vontade de seguir caminho. Fiz apenas o que me mandaram. O Pedro quis seguir, eu segui.
Mortagne-au-Perche – Dreux Etapa 14 77km Chegada em 80h37min Paragem 3h55min
Se até aqui o Pedro me ajudou, neste percurso até Dreux fez mais que isso. Provavelmente no percurso anterior já tinha sido em parte assim, mas esta fase foi diferente. 8km depois do posto pedi para parar e deitei-me no chão. Lembro-me do Pedro dizer para rebolar para a manta térmica que entretanto tinha colocado no chão e assim o fiz, com dificuldade. Senti-o a tapar-me, ouvi vozes a perguntar se estava tudo bem e se queríamos ajuda. Depois não sei. Acordou-me e disse que tinha dormido cerca de 40min. Disse para eu me levantar e seguimos. A partir daqui o percurso fez-se penosamente. Parávamos muitas vezes porque eu pedia. O Pedro por diversas vezes colocou a mão nas minhas costas e levou-me. Eu pedalava o que podia, mas o problema era o pescoço. Qualquer movimento que fazia sentia duas facas espetadas nos músculos. E o pescoço já pouco mexia. Foi penoso. Muito.
Não consigo descrever este percurso, mas sei que numa qualquer vila parei desesperado. Encostei a cabeça ao guiador e não consegui para de chorar. Pedi desculpa ao Pedro, pedi para ele seguir e para me deixar que eu não conseguia andar mais. Pedi para ligar à Filomena para me vir buscar e depois disse que não tinha que ser a Filomena a ter a chatice e que eu ia ligar á Sara. Chorei desesperado. Não conseguia mais.
O Pedro não me deixou. Nem por um minuto o Pedro deixou de estar comigo, ao meu lado.
Pôs a mão nas minhas costas e percebeu a situação. Tinha acabado. Concordou em telefonar á Filomena. Passou-me tudo pela cabeça. A minha desilusão, a cara com que iria dizer a todos que tinha falhado, o peso da desistência. Nesses segundos vi o fundo. Foi feio. Foram 2 minutos apenas.
Quando estávamos ali parados, numa esquina no meio da estrada, um homem que estava a ver passar os ciclistas, vendo o que se passava, aproximou-se. Não sei bem porque, mas o Pedro rapidamente quis sair dali e disse para seguirmos. Não sei também porquê mas segui. Segui. E passou o momento. Não desisti. Não calhou.
Parávamos muito e andávamos pouco. Eu perguntava frequentemente ao Pedro se iriamos conseguir. Ele respondia sempre, com um ar calmo, que sim. Que estávamos a andar bem. Em determinado momento fez umas contas e disse que se não conseguíssemos fazer X km em Y tempo, então eu desistiria. Não me lembro das contas, mas ele fê-las. Continuámos. Lembro-me de cerrar os dentes e vociferar mais uns palavrões. Falava sozinho para me tentar motivar. Dizia a mim mesmo que tinha que conseguir. A mente bailava entre um pensamento positivo de “foram dois anos a treinar para conseguires acabar” e um negativo de “perdeste dois anos a treinar e não vais conseguir”. Muitas vezes sentia a mão do Pedro nas costas para me levar.
Não sei como chegámos a Dreux. Mas chegámos. O trio maravilha estava a comer e eu vi, pelo canto do olho, o buffet apetitoso que o Pedro me impediu de comer. Tínhamos que ir para a carrinha para dormir rapidamente e conseguir recuperar qualquer coisa. Ele tinha razão mais uma vez.
Dreux – Saint-Quentin-en-Yvelines Etapa 15 64km Chegada em 88h08min
Mal cai na cama adormeci. Ou até antes. Dormi cerca de 3 horas, acho. Acordei com o Pedro já a comer. Comi e vimos que estava a chover. Uau, era mesmo isso que eu precisava. O Pescoço estava talvez melhor. Nem sei. Faltavam 65km. Era só isso que me interessava. Este último percurso foi feito com um único pensamento:
Tenho que conseguir pedalar 45km… os outros 20 nem que vá a empurrar a bicicleta.
A ideia que tenho é que ainda assim andámos relativamente bem. Posso estar errado. As dores mantinham-se, mas era de dia. Não que isso fosse muito diferente. Via alcatrão, pouco mais. O percurso tinha mais carros, o que dificultava, mas continuámos a andar. O Pedro a indicar o caminho, a avisar dos buracos, a informar que havia um ciclista parado na berma. Numa das paragens ouvi alguém a vomitar compulsivamente.
Das poucas vezes que levantava a cabeça com a mão, via vários ciclistas com ar cansado, outros conversando calmamente. Passávamos alguns, eramos passados por muitos. Continuámos a andar. Devagar. Foi apenas nos últimos 10km que senti mesmo que ia conseguir chegar. “Agora só se for atropelado é que não chego”… e era possível acontecer. Fiz estes 10km a chorar. Mais uma vez. Chorava porque estava feliz por saber que ia chegar. Chorava por sim.
Cheguei a Paris
Na chegada não vi a Sara e os miúdos, o que me deixou apreensivo. Procurei por eles, posei a bicicleta, tirei uma fotografia ou duas e agradeci ao Pedro. Depois vi-os. Vieram ter comigo e mais uma vez chorei. Agora compulsivamente. Conseguimos. Agarrado à Sara, à Rita e ao Pedro. Chorei de felicidade por ter(mos) conseguido.
Trato o meu filho muitas vezes por campeão. Quando o chamei campeão ele disse-me
“Pai, o campeão és tu, conseguiste”. Chorei mais um bocado.
Espero que este esforço que fiz lhes ensine algo. Que vale a pena trabalharmos para completar o que nos propomos fazer. Que vale a pena ser resiliente. Que vale a pena acreditar. Que temos que lutar pelo que queremos, mas que o fim é compensador.
Mas há algo que aprendi que não lhes consigo ainda ensinar.
Altruísmo – é quando uma pessoa abnega de si mesma em prol de outras pessoas.
A atitude do Pedro foi de altruísmo no mais puro sentido da palavra. Sem ele não teria conseguido chegar a Paris de bicicleta. Sem ele teria corrido mais riscos. Sem ele tinha quase seguramente falhado. O Pedro foi os meus olhos ao longo de quase 200km. Foi mais que isso.
Também a Filomena teve um papel fundamental. O sorriso dela cada vez que nos via de novo dava alento a um zombie colado a uma bicicleta.
No fim, depois de um abraço sentido aos restantes Portugueses que estavam juntos e felizes por terem também conseguido, alguns tão ou mais emocionados que eu, fui comer e descansar. Já depois do descanso de umas duas horas e de um bom banho, juntámo-nos no velódromo para conversar um pouco sobre várias peripécias. Troquei um jersey com os Rando Irlandeses (acabou por não ser o que queria, com símbolo do PBP2015, mas isso só reparei mais tarde, enfim). Vou usar este jersey com orgulho, sabendo que pertence a alguém, que como eu, completou o PBP 2015.
Esta viagem teve muitos bons momentos e alguns menos bons. Retiro grandes ensinamentos que espero um dia mais tarde conseguir transmitir a outros. Foi uma viagem, para mim, épica. Vai ficar para sempre na minha cabeça; fotografias de vários momentos, a cor, o cheiro, o sabor, o sentimento.